Publico, hoje, neste espaço as respostas dadas, na íntegra, pelo Professor Elísio Estanque, autor de "A Classe Média: Ascensão e Declínio", livro da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que pode comprar, hoje, com o DE por mais 2,4 euros.
Como caracteriza a nossa classe média? E qual tem sido a sua evolução?
A classe média assalariada (a que alguns chamam “nova” classe média, para distinguir da pequena burguesia empresarial), é composta essencialmente por funcionários, quadros e empregados do setor terciário. O seu crescimento é, por assim dizer, fruto da terciarização da economia e dos processos de concentração urbana que em geral lhe estão associados. Os pequenos empresários e os profissionais liberais também fazem parte da classe média – que se distingue, por um lado, dos trabalhadores manuais e das camadas mais pobres e, por outro lado, também não integra as camadas superiores –, mas o grosso dessas categorias passou a ser constituído por esses profissionais intermédios, qualificados e semi-qualificados da força de trabalho. Se nos países mais desenvolvidos o crescimento da dita classe média foi parte de um processo longo de sedimentação das qualificações e de expansão do progresso técnico e das políticas sociais, em países de desenvolvimento tardio e intermédio, ou seja, casos como o português, em que a modernização além de tardia e muito incompleta permaneceu articulada a formas de organização mais tradicionais, o esforço desenvolvimentista ficou sobretudo na dependência das politicas públicas e do papel do Estado. Daí que, em Portugal, a classe média tenha crescido em larga medida á sombra o Estado. Até porque o nosso atraso nos anos setenta era de tal ordem que a transição democrática e a tentativa de desenvolver o país – com políticas sociais na Educação, na Saúde, na Segurança Social, no Emprego, etc. – teria de exigir uma grande intervenção do Estado. O problema é que esses investimentos não foram convenientemente absorvidos pela sociedade civil nem deram lugar a uma economia mais inovadora e competitiva. Os progressos conseguidos continuaram muito dependentes do esforço de investimento público, e entretanto a estabilidade laboral, a segurança e a proteção dos direitos que conferiram à “classe média” (ao funcionalismo público, sobretudo) esse estatuto, começaram a ser abalados, primeiro com o excessivo endividamento, privado e público, e depois com o acentuar do nosso défice, da crise financeira e da austeridade revelaram-se as enormes fragilidades da classe média. Tornou-se então claro que o sonho da classe média começou a esfumar-se e, afinal, o próprio estatuto social dessas camadas era, em boa medida, fictício.
Em Portugal existe pobreza envergonhada?
Existe. E o meu livro aponta vários exemplos disso mesmo, de resto, muitos deles relatados na imprensa. As famílias e os indivíduos a dada altura incorporaram um “status” de uma condição “remediada” e que mereceu a consideração (ou até a inveja) de conhecidos, vizinhos, familiares o que, agora, perante as dificuldades e carências económicas inesperadas, lhes coloca acrescidas dificuldades no plano psicológico. A imagem projetada para o exterior entra em conflito com a realidade de um orçamento familiar que já não consegue sustentar esse estatuto de desafogo. Por isso, em muitos casos recorre-se à assistência, mas isso é feito às escondidas por forma evitar o encontro com os grupos mais pobres e miseráveis com quem os que já foram (e ainda se sentem) membros da classe média não aceitam ser confundidos.
Em termos sociológicos – e económicos – é possível distinguir miséria de pobreza?
Diria que na pobreza, apesar das dificuldades e da “ginástica” que uma família pobre tem de fazer, ainda pode conseguir suprir as necessidades elementares, porventura com alguma ajuda (institucional ou caritativa), enquanto a miséria é já uma condição degradante do ponto de vista do bem-estar, onde as necessidades primárias não conseguem ser satisfeitas e, por isso mesmo, a miséria estende-se do plano económico para o psicológico ou até físico. Porque atrás da miséria está a fome e a doença.
Um País sem classe média tem tendência, a médio prazo, a “morrer”? Ou são possíveis milagres?
A classe média integra grupos muito distintos no seu seio. Mas não é só a questão financeira que conta. O empobrecimento de uns, a contenção e o risco de cair na penúria de outros, a revolta daqueles que, apesar das dificuldades, se possam aguentar ou ainda o fechamento em soluções individualistas de muitos outros compõem uma panóplia de possíveis reações. Porém, as respostas desses grupos, desencantados e frustrados com o poder económico e político podem também derivar para a contestação coletiva, engrossando movimentos, protestos e revoltas mais ou menos radicais. Um contexto de forte descontentamento e de saturação face às instituições e aos agentes do sistema (partidos políticos) é propício ao surgimento de propostas salvíficas e a discursos populistas que podem resultar em ditaduras. E estas camadas descontentes podem servir de rastilho, arrastando consigo os restantes setores populares, os desempregados e os excluídos que o eram antes da crise. Sem classe média nenhuma democracia consegue aguentar-se por muito tempo. Mas a classe média também atua coletivamente e pode ajudar a fazer revoluções.
Qual a importância deste sua obra?
Penso que ajuda a compreender melhor o significado – passado e futuro – da classe média e a perceber a própria origem do conceito em termos sociológicos. No fundo, quero acreditar que quem ler este livro fique na posse de um conhecimento mais informado e uma perspetiva mais critica sobre a sociedade portuguesa, inclusive que passe a olhar a “classe média” não só como uma categoria que aceita e adere aos princípios do mercado e da economia capitalista, mas também como uma força transformadora e que participa ativamente na mudança social e política.