"Eu penso que não há ninguém que não saiba o que é entrar nessa selva entrelaçada e obscura onde as coisas deixam de ser completamente claras", refere, em entrevista, o padre Tolentino de Mendonça comentando uma frase de Dante.
("A meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura").
Entrevista publicada na IDEIAS EM ESTANTE
"Não há crescimento sem crise e não há crise sem sofrimento"
NUM MOMENTO EM QUE A ECONOMIA VOLTA A PROVAR QUE NADA É GARANTIDO, A FORÇA INTERIOR GANHA PESO. HOJE O PARADIGMA ESTÁ A MUDAR. E O SER SUBSTITUI O TER. PARA BEM DE TODOS NÓS
É um verdadeiro tesouro escondido. Tolentino Mendonça, nascido em Machico, Madeira, é um padre de características invulgares. Poeta e ensaísta, Tolentino tem o dom de falar sobre Deus e da fé na linguagem corrente do homem terreno, que muitas vezes se esquece do "omnipresente". Inspirador de muitos, Tolentino é conhecido por encher aos domingos igrejas com jovens fiéis, que procuram força para enfrentar a semana. Mas Tolentino ocupa também muitos outros lugares de destaque. Entre eles páginas com sábios poemas que já fazem deste homem "um dos grandes poetas dos nossos dias", um escritor que até já foi escolhido como a personalidade portuguesa que foi Vaticano oferecer versos ao Papa. Em "O Tesouro Escondido", Tolentino mostra a sua essência. Como sempre, surpreende. E muito. Leia aqui o essencial da entrevista que será emitida na integra no ETV e no site do Económico.
"A meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura" (Dante). Como é que podemos interpretar esta escuridão, que hoje - em crise - atinge tantas pessoas? Até que ponto "acreditarmos em algo" nos pode ajudar a caminhar nesta selva escura…?
Parte significativa do meu pensamento ocupa-se dos momentos de complexidade da nossa vida. Porque há aquela chamada normalidade e depois há momentos de encruzilhada, momentos em que nos sentimos especialmente interrogados. Ou porque atravessamos uma determinada estação interior, ou pela própria idade, ou pelos acontecimentos, ou pela envolvente do próprio mundo e do tempo. O certo é que, às vezes, somos levados a um questionamento mais profundo acerca da nossa humanidade. E por isso esse verso de Dante - a meio da vida entrei numa selva escura. Eu penso que não há ninguém que não saiba o que é entrar nessa selva entrelaçada e obscura onde as coisas deixam de ser completamente claras. Mas esses momentos, tal como aquele em que vivemos, constituem também oportunidades. Não há crescimento sem crise e não há crise sem sofrimento. Se aplicarmos isso, não apenas a nível do país ou da economia, mas ao crescimento e à maturação pessoal, percebemos que os ciclos de crise são momentos, sem dúvida dolorosos, porque nunca estamos preparados para eles; mas ao mesmo tempo representam grandes oportunidades de abertura, de conhecimento, de maturação. Existe uma autora francesa que diz, com razão, que "as crises são grandes mestres e ouvindo-as ouvimos uma parte secreta do nosso coração."
Até que ponto podemos exercitar esta actividade de nos auto-descobrirmos?
Eu penso que a cultura contemporânea, se por um lado parece distrairmo-nos muito nas propostas de consumo, quase atordoantes, por outro não deixa de lançar o desafio a uma procura interior. Porque a grande riqueza, o grande potencial que trazemos, não é apenas o da produção exterior que fazemos, que sem dúvida tem o seu significado, mas é a descoberta da nossa própria humanidade. Sentir que somos, não apenas que temos, mas que somos realmente e que há uma digestão interior da própria vida e há uma série de questões, de janelas que se abrem, de mundos que se entreabrem dentro de nós. E sentir que damos espaço a isso. Um exemplo desta mudança de paradigma, e de maior atenção à vida espiritual, é por exemplo o dos caminhos de peregrinação. Hoje os velhos caminhos de peregrinação - falo de Santiago, de Fátima e de outros internacionais - voltaram a encher-se de vozes. Quer dizer que há uma disponibilidade maior para tentar a própria escuta profunda daquilo que nos habita.
As pessoas procuram de alguma forma justificação também para tantas falhas científicas?
Sem dúvida que estamos a sair de um paradigma - e se calhar ainda estamos envolvidos no seu próprio colapso - em que a ciência, a técnica ou determinados modelos da própria economia pareciam prometer uma salvação.
Portanto era uma equação: x + y = z?
Exactamente. Tudo estava garantido. Aquilo que hoje percebermos globalmente, mas que depois cada um de nós vai percebendo de formas diferentes, ao longo da vida, é que não é bem assim. Não há essa segurança garantida. E se calhar as respostas que pensávamos ter encontrado são ainda etapas provisórias de um caminho que temos que fazer. E ai, de facto, entra esta dimensão da vida interior e espiritual. Há respostas do humano, há equações da nossa humanidade, que sem integrarmos essa dimensão de procura, de atenção, de vigilância, de sentir o gosto profundo da própria vida… sem isso ficamos por uma rasura, por uma superfície, que não nos torna felizes
Perigos no facto de procuramos essa procura interior?
Assinalo um perigo claramente. O discurso sobre a valorização do mundo interior pode ser uma espécie de fuga da realidade que nos envolve. Podemos estar à procura de um certo conforto, de uma certa de paz de espírito como forma de voltar às costas aos desafios concretos, que nos chegam dos outros e do próprio tempo. Nesse sentido, o discurso de revalorização do mundo interior tem que ser sempre encontrado no equilíbrio destas variantes. Claro que há um caminho interior que temos que fazer, há uma escuta do silêncio do próprio coração, mas não podemos desistir de escutar as vozes que estão ao nosso lado e sobretudo as mais desafiantes.
Escuta muitas vozes, nomeadamente de jovens, qual a maior fonte de optimismo?
A maior fonte de optimismo são as próprias pessoas. Há no humano, e esse talvez seja o vestígio de Deus, a marca, o dedo de Deus em nós, que é uma capacidade impressionante de renascer. De acreditar. Nascemos muitas vezes das próprias cinzas como vemos o fogo fazer. E isso é de uma esperança enorme. Com a nossa humanidade nunca podemos dizer "está acabado" ou "a derrota aconteceu", "chegou ao fim" ou "já não dá mais nada". Pelo contrário: é sempre possível. Depois de chegarmos ao fim ainda temos uma série de começos que nos estão prometidos.